Claro que escrevo um texto – por Isabel Tavares

Dezembro 25, 2015

A Mãe da Maria telefonou-me ontem à noite a pedir um texto para o blogue, estava eu a meio das primeiras compras de Natal. Fiquei envergonhada. Vou explicar, muito rapidamente, o que me passou pela cabeça, ali, à frente do talho, com a senha n.º5 na mão, ia ainda na 82, enquanto esperava para pedir as carnes para rechear o peru do almoço de dia 25 de Dezembro.

«Claro que escrevo um texto», respondi de imediato. Mas que texto? Estou metida em apuros, pensei para comigo. Não me sai nada, ando tão zangada… Este não está a ser um bom Natal para mim. Pior: 2015 foi um ano mau. Fui traída pelo meu corpo e por médicos, perdi um emprego onde não me sentia em casa mas ao qual me dedicava de alma e coração, foi embora um amigo que me era querido. Podia continuar quase eternamente – e a senha era ainda a 87 enquanto eu passava o ano em revista. De repente, corei de vergonha.

Foi este ano que conheci a Ana Rebelo e a Maria. Em Maio, mais precisamente, conversei pessoalmente com a mãe da miúda dos melhores abraços do mundo. E com a filha. Apaixonei-me. O resultado foi um artigo publicado no jornal i de 1 de Junho deste ano ( http://ionline.pt/394487?source=social ). Como posso ter pensado que 2015 foi um ano mau? A verdade, Ana, é que parece que nos conhecemos de toda a vida. Há, muito raramente, amizades assim.

O artigo, pelos comentários, pelos emails, pelas mensagens que gerou, deu-me ânimo para continuar a escrever sobre o tema, sobre a inclusão. Não como um assunto “coitadinho”, que detesto, mas exactamente como uma matéria normal, de todos os dias, porque é comum, embora difícil. Atrás da Ana e da Maria veio a sua família, veio a Verónica e o nosso lanche combinado à beira-mar – palavra de honra que vai acontecer! – , veio a Maria João e a Pilar, vieram as crianças e as famílias que vivem em segredo com VIH, a Mónica, a Joana e o Martim, que sofreram acidentes terríveis mas querem tirar a carta de condução, histórias de miúdos e graúdos, como os deficientes das Forças Armadas, sobre quem escrevi no Natal de 2014, que foram para a guerra uns e voltaram outros.

Escrevo habitualmente sobre economia, banca muitas vezes, também um tema sensível, à sua maneira. Como todos os assuntos “dolorosos”, muitos preferem esconder a realidade debaixo do tapete. Mas, por estranho que pareça, os bancos continuam a indignar mais pessoas do que aqueles que, por qualquer motivo, se sentem feridos, magoados, sós e à parte em vez de parte da sociedade, de alguém.

E, senha 92, foi esta a minha reflexão: eu, eles, todos queremos apenas adaptar-nos, andamos à procura de nos incluir. E é dever de cada um ajudar na medida das suas possibilidades. Sempre e só. Estender a mão, não fechar os olhos, abrir o coração. Publiquei no meu mural aqui no Facebook um texto de um poeta que admiro, Carlos Drummond de Andrade. Copio um excerto da sugestão que deixou: «10 meses de Natal e 2 meses de ano vulgarmente dito. E não parece absurdo imaginar que, pelo desenvolvimento da linha, e pela melhoria do homem, o ano inteiro se converta em Natal, abolindo-se a era civil, com suas obrigações enfadonhas ou malignas. Será bom. Então nos amaremos e nos desejaremos felicidades ininterruptamente, de manhã à noite, de uma rua à outra, de continente a continente, da cortina de ferro à cortina de nylon – sem cortinas».

Lembrei-me de quando era muito pequena e os meus pais recebiam lá em casa um amigo cego – Carlos, acho que se chamava assim. Todos os anos a minha Mãe preparava-lhe um cabaz de Natal . Na sala, o meu Pai conversava com ele, que era “sopinha de massa”. Quando eu aparecia, perguntava: «Ó João, posso?» e, com as mãos, tacteava o meu rosto e dizia: «esta tua filha vai ser jornalista!»

Estes ano, vezes sem conta me esqueci de tudo isto. Agora, à espera, no talho – senha 99 – não me lembrava disto. Que vergonha! A Maria recordou-me isto a cada abraço, a cada sorriso. A Mãe da Maria e o seu telefonema, as insistências contínuas para que eu não desistisse, lembraram-me que talvez seja esta a minha minúscula, ínfima, pequeníssima contribuição. Senha n.º5

1 peru (para deixar de molho em água fria com rodelas de laranja e limão, sal e um cálice de aguardente até ser cozinhado);
250g de febra de porco;
150g de alcatra;
100g de toucinho/entremeada;
(Refogam-se as carnes em azeite, cebola e alho, temperam-se com sal e pimenta qb, duas colheres de sopa de vinho do Porto, juntam-se cerca de 150g de cogumelos frescos e 150g de ameixas pretas. Tritura-se e recheia-se o peru que, antes de ir ao forno, é barrado com banha, alho pisado, salsa picada, duas colheres de mel e vinho branco).

Feliz Natal!

Isabel Tavares

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