A ampulheta da Maria – por António Bagão Félix

Novembro 16, 2015

A ampulheta é um dos objectos mais perfeitos no casamento entre a suavidade e delicadeza da forma e o percurso cadenciado do tempo.

É a combinação de dois infinitos contidos finitamente entre duas partes de vidro separadas por uma estreita portagem. O infinito do tempo e o infinito do espaço, ali convertido em grãos finos de areia, finitos mas incontáveis.

Gosto da forma tradicional da ampulheta. Simétrica, transparente, equilibrada. Aprecio o seu som, no seu modo de medir o tempo. Quase silencioso, mas audível no silêncio de tudo o resto. Vibro com a precisão física de nos dar o tempo.

A ampulheta não tem ponteiros, mas permite a comparação entre o que já é passado e o que ainda é futuro, no presente instantâneo do seu gargalo, por onde se escoa o fino mineral.

A ampulheta trabalha quando queremos, e descansa quando a deixamos. Ao contrário do relógio, somos nós que lhe concedemos tempo para nos dar o tempo.

Gosto de lhe sentir o seu frágil coração, dentro do meu coração.

Num livro de contos que escrevi, há anos, um deles tomou a aparente forma de ampulheta.

Voltei a essa minha “ampulheta” feita de palavras. E adaptei-a à nossa querida Maria.

Como em qualquer ampulheta, devemos vê-la de baixo para cima, entre o que já foi e o que há-de ser. Por isso, este pequeno relógio de “areia de artigos, verbos, substantivos e adjectivos” deve ser lido desde a última linha de baixo (do mais passado) até à primeira linha de cima (do mais futuro). Entre as âmbolas, passa a areia do presente com uma só palavra: o artigo definido “o” (ser). Desde a dádiva uterina à Esperança no tempo que já não é este nosso tempo. O alfa e o ómega. E Maria sempre.

 

O reencontro. O que está fora do tempo. Do tempo que já não há no tempo que foi.

O estar mais perto d’Ele. A dúvida com a certeza. A sombra. E a luz. E o ainda.

O continuar depois. O continuar depois do depois. Ainda a luta, sem vezes.

O só, nunca. O com os outros. O abraço. O calor da alma. A alma alva.

O sossego fora do ruído. A passagem. A margem. O rio. A neblina.

 O pudor. A sabedoria. A prudência. O itinerário. A temperança.

O jardim vestido. O Outono com Primavera. A renúncia.

O ver do olhar. A busca lá. O sorriso cá. A canção já.

A distância. O tempo dela. Da chuva. O ontem.

O sempre dela. O sonhar ainda. O bastante.

O definitivo e o absurdo no contrário.

O cansaço. A força. A natureza.

O espírito. A Maria. A rosa.

O sentir. O desejar. Eu.

O alegre no triste.

O amar para.

   O abraço.

Ser.

O

Ser.

O abraço.

O para amar

O triste no alegre.

O querer. O rir. O Eu.

O ser. A alegria. Os irmãos.

O sempre mais. A esperança cá.

  O que mudou. O que vai ser mudado.

    O sangue. A essência. A eternidade agora.

O caminhar. A pressa. A vontade. A primavera.

O efémero. O já decisivo. O ruído antes do silêncio.

O sonho do sonho. O breve. O não ter fim. O quase ter.

O caleidoscópio. O viver entre. O viver por entre. O amanhã.

O medo. O risco. A Maria. O amor. O acreditar. O hino à Vida ali.

O segredo e o gosto. O anjo da guarda. O Sol e o céu. O azul. O descobrir.

O tempo do tempo. A palavra. A Maria. Sempre. O significado. O lar. Os afectos.

O princípio do Mistério. O mistério de um princípio. O silêncio da luz. A luz pela Mãe.

António Bagão Félix

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2 Comentários

  • Responder Katia dos Anjos Setembro 25, 2018 em 12:38

    Linda homenagem, a qual me fez refletir através de sua visão sobre Maria.
    Me emocionei.

    Em busca do significado da ampulheta, a melhor definição até hoje.

    Obrigada por esta oportunidade.

    • Responder Ana Rebelo Setembro 29, 2018 em 20:51

      Obrigada Katia. É mesmo isso <3. Um grande beijinho

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