A ampulheta é um dos objectos mais perfeitos no casamento entre a suavidade e delicadeza da forma e o percurso cadenciado do tempo.
É a combinação de dois infinitos contidos finitamente entre duas partes de vidro separadas por uma estreita portagem. O infinito do tempo e o infinito do espaço, ali convertido em grãos finos de areia, finitos mas incontáveis.
Gosto da forma tradicional da ampulheta. Simétrica, transparente, equilibrada. Aprecio o seu som, no seu modo de medir o tempo. Quase silencioso, mas audível no silêncio de tudo o resto. Vibro com a precisão física de nos dar o tempo.
A ampulheta não tem ponteiros, mas permite a comparação entre o que já é passado e o que ainda é futuro, no presente instantâneo do seu gargalo, por onde se escoa o fino mineral.
A ampulheta trabalha quando queremos, e descansa quando a deixamos. Ao contrário do relógio, somos nós que lhe concedemos tempo para nos dar o tempo.
Gosto de lhe sentir o seu frágil coração, dentro do meu coração.
Num livro de contos que escrevi, há anos, um deles tomou a aparente forma de ampulheta.
Voltei a essa minha “ampulheta” feita de palavras. E adaptei-a à nossa querida Maria.
Como em qualquer ampulheta, devemos vê-la de baixo para cima, entre o que já foi e o que há-de ser. Por isso, este pequeno relógio de “areia de artigos, verbos, substantivos e adjectivos” deve ser lido desde a última linha de baixo (do mais passado) até à primeira linha de cima (do mais futuro). Entre as âmbolas, passa a areia do presente com uma só palavra: o artigo definido “o” (ser). Desde a dádiva uterina à Esperança no tempo que já não é este nosso tempo. O alfa e o ómega. E Maria sempre.
O reencontro. O que está fora do tempo. Do tempo que já não há no tempo que foi.
O estar mais perto d’Ele. A dúvida com a certeza. A sombra. E a luz. E o ainda.
O continuar depois. O continuar depois do depois. Ainda a luta, sem vezes.
O só, nunca. O com os outros. O abraço. O calor da alma. A alma alva.
O sossego fora do ruído. A passagem. A margem. O rio. A neblina.
O pudor. A sabedoria. A prudência. O itinerário. A temperança.
O jardim vestido. O Outono com Primavera. A renúncia.
O ver do olhar. A busca lá. O sorriso cá. A canção já.
A distância. O tempo dela. Da chuva. O ontem.
O sempre dela. O sonhar ainda. O bastante.
O definitivo e o absurdo no contrário.
O cansaço. A força. A natureza.
O espírito. A Maria. A rosa.
O sentir. O desejar. Eu.
O alegre no triste.
O amar para.
O abraço.
Ser.
O
Ser.
O abraço.
O para amar
O triste no alegre.
O querer. O rir. O Eu.
O ser. A alegria. Os irmãos.
O sempre mais. A esperança cá.
O que mudou. O que vai ser mudado.
O sangue. A essência. A eternidade agora.
O caminhar. A pressa. A vontade. A primavera.
O efémero. O já decisivo. O ruído antes do silêncio.
O sonho do sonho. O breve. O não ter fim. O quase ter.
O caleidoscópio. O viver entre. O viver por entre. O amanhã.
O medo. O risco. A Maria. O amor. O acreditar. O hino à Vida ali.
O segredo e o gosto. O anjo da guarda. O Sol e o céu. O azul. O descobrir.
O tempo do tempo. A palavra. A Maria. Sempre. O significado. O lar. Os afectos.
O princípio do Mistério. O mistério de um princípio. O silêncio da luz. A luz pela Mãe.
António Bagão Félix
2 Comentários
Linda homenagem, a qual me fez refletir através de sua visão sobre Maria.
Me emocionei.
Em busca do significado da ampulheta, a melhor definição até hoje.
Obrigada por esta oportunidade.
Obrigada Katia. É mesmo isso <3. Um grande beijinho